“A época pré-islâmica é a que fixa os arquétipos culturais e literários da civilização arábico islâmica.”
Texte en langue portugaise destiné à mes étudiants de Master à Mertola. Tous les autres textes sont en français ou en arabe.
INDÍCE
1. Introdução
2. Sociedade Pré-Islâmica
2.1. Geografia e meio ambiente
2.2. Organização social da tribo
2.3. O poeta: lugar e função
3. A Poesia
3.1. Al-Mu'allaqat
4. Conclusão
BIBLIOGRAFIA
1. Introdução
Estudar a cultura árabe e islâmica é tentar perceber um pouco melhor o mundo contemporâneo e os homens do nosso tempo. O Islão nasce com Maomé no séc. VII, altura em que começa a era árabe cujo início é marcado pela héjira no ano 622.
Existem referências aos árabes enquanto os habitantes de Península Arábica desde o 1º milénio a.C., e sabemos que a tradição poética é muito antiga, remonta aos séculos III e IV, mantendo-se exclusivamente oral até ao fim do séc. VII.
As tribos árabes viviam em lutas contínuas mas a generosidade e a honra estava sempre presente para fazer face ao maior inimigo, o deserto. Qualquer viajante seria recebido em qualquer tenda e alimentado durante três dias antes de lhe ser feita qualquer pergunta. A violação destas leis da hospitalidade traduzia-se numa grande desonra. A capacidade de sobrevivência estava assente num rigoroso código social, baseado na consanguinidade paternal. Os árabes possuíam uma consciência étnica que os conduziu até Abraão, através do filho que este teve com a escrava Agar, Ismael
O estilo de vida dos beduínos foi mistificado pela civilização árabe que a converteu no arquétipo cultural e étnico, ainda que os árabes pré-islâmicos não fossem exclusivamente nómadas. Com estes coexistiam vales agrícolas e um estilo de vida baseado no transporte comercial, que permitiam um certo desenvolvimento urbano em oásis como Meca e Yatrhib (mais tarde chamada Medina) e uma classe social de comerciantes.
A literatura árabe nasce no meio beduíno dos nómadas pastores, que atravessavam as estepes semidesérticas da Península Arábica à procura de pastos para os animais e água.
O meio ambiente em que se moviam era extremamente hostil e joga um papel crucial na construção da sociedade tribal dos beduínos, bem como na literatura que esta sociedade produziu. A paisagem desértica é fonte de inspiração na sua rudeza, e a fauna e flora constantemente utilizados como metáforas.
O período anterior à fuga de Maomé para Yathrib, posteriormente Medina, é conhecido no Islão como a época da ignorância, Yahiiyya, do ponto de vista religioso. No entanto, é a época pré-islâmica que fixa os arquétipos culturais e literários da civilização arábico islâmica.
2. Sociedade Pré-Islâmica
2.1 Geografia e meio ambiente
Desde muito cedo que a Arábia constitui uma rota de tráfego entre os países do Mediterrâneo e o Extremo Oriente. As comunicações tanto no interior como através da Arábia foram condicionadas pela configuração geográfica da península, segundo linhas precisas.
A Península Arábica forma um vasto rectângulo com uma área de cerca de um milhão e duzentos e cinquenta mil milhas quadradas. É limitada a norte pelo Crescente Fértil; a leste e a sul pelo Golfo Pérsico e pelo Oceano Indico; a oeste pelo Mar Vermelho. Os distritos do sudoeste do Iémen são uma região montanhosa bem irrigada, o que favoreceu o desenvolvimento da agricultura e a implantação de civilizações sedentárias. O resto do território é constituído por estepes e desertos interrompidos por oásis e atravessados por algumas rotas de comércio e caravanas. A população era essencialmente pastoril e nómada.
Os desertos da Arábia apresentam diversos tipos: os de Nufud, imensa vastidão de dunas móveis que formam uma paisagem em permanente mutação; os de Hamad, de terreno mais consistente nas zonas próximas da Síria e do Iraque; a zona das estepes, de solo mais compacto, onde chuvas ocasionais fazem surgir uma vegetação súbita e efémera; e por último, o imenso e impenetrável deserto do Sudeste. As comunicações entre estas regiões são escassas e difíceis.
O Centro e Norte da Arábia são tradicionalmente divididos pelos árabes em três zonas. A primeira é a Tihama, “terras baixas”, que caracteriza as planícies e vertentes do litoral do Mar Vermelho. A segunda, mais a Leste, é a do Hijaz, “barreira”, onde habitava a elite das tribos árabes. Para leste do Hijaz fica o grande planalto interior de Najd, grande parte do qual constitui o deserto de Nurfud.
2.2 Organização social da tribo
O traço dominante da população do Centro e Norte da Arábia no período que precedeu imediatamente a ascensão do Islão é o do tribalismo beduíno. Na sociedade beduína a unidade social é constituída pelo grupo e não pelo indivíduo. Este só tem direitos e obrigações enquanto membro do respectivo grupo. O grupo mantém-se unido exteriormente pela necessidade de autodefesa contra as dificuldades e perigos da vida do deserto, e internamente pelos laços de sangue e descendência por linha masculina, que constitui o vínculo social básico. A subsistência da tribo depende dos rebanhos e manadas e da pilhagem de aldeias vizinhas e caravanas que se aventuram a atravessar a Arábia. Normalmente a tribo não reconhece propriedade privada, e encontramos testemunhos de que por vezes os próprios rebanhos constituíam propriedade colectiva da tribo e de que apenas os bens móveis eram considerados propriedade individual.
A vida da tribo era regulada pelo direito consuetudinário, a Sunna, ou a prática dos antepassados, cuja autoridade advinha da veneração pelo passado, e encontrava a sua única sanção na opinião pública.
A organização politica da tribo era rudimentar. O chefe era o Sayyid ou Sheikh, chefe eleito, o qual raramente representava mais do que o primeiro entre iguais. Mais do que ditar, ele seguia a opinião tribal, tinha uma função de moderador e era o chefe militar e filosófico que garante a solidariedade e a coesão da tribo. Os direitos e obrigações cabiam às diversas famílias no seio da tribo, mas a nenhuma fora dela. O era eleito pelos velhos da tribo, muitas vezes de entre membros de uma única família, funcionando como uma espécie de casa de Sheikhs, designada por Ahl al-bait, “as pessoas da casa”. Era apoiado por um conselho de anciãos denominado Majlis, constituído pelos chefes das famílias e pelos representantes dos clãs existentes na tribo.
A religião tribal não possuía clero, os nómadas transportavam consigo os seus deuses. A religião não era individual mas sim comunal. A fé tribal concentrava-se à volta do Deus da tribo, geralmente simbolizado por uma pedra. Ficava sob custódia da casa do Sheikh, que desse modo conquistou um certo prestígio religioso. Deus e culto constituíam a divisa da unidade tribal e a única expressão ideológica do sentido de unidade e coesão da tribo. A submissão ao culto tribal era expressiva de lealdade política. No campo religioso impunha-se a figura do Kahin, o adivinho que conhece os lugares sagrados. É ele que lidera os sacrifícios e os rituais fúnebres.
2.3 O poeta: lugar e função
O poeta, sha^ir, “ressentir”, tinha uma importante condição social na tribo, entre a figura do Sheikh e do Kahin,, que considerava os seus poemas parte do património. É a ele que está entregue a memória da tribo, e os seus versos precediam e selavam guerras, desencadeavam-nas ou evitavam-nas, tal era o poder da palavra. A poesia tinha também uma função social, ora a dizer bem da tribo, realçando a coragem, a nobreza e a generosidade dos seus elementos, ora a dizer mal do inimigo, apontando-lhe características como cobardia, avareza e falta de nobreza. A transmissão destes poemas era oral e esta realidade reflecte-se na existência de fórmulas de locução próprias da oralidade.
3. A Poesia
A referência principal e obrigatória da literatura árabe remonta até à época pré-islâmica, a jahiliyya. Nesta pré-história, apenas ao alcance da nossa imaginação, é a poesia, e não a prosa, que marca a criatividade.
O árabe clássico tem a sua origem nos antigos dialectos árabes que possuíam uma superstrutura linguística comum, a Koiné, que se manteve como a língua literária árabe até ao presente. No séc. VI as tribos árabes da península possuíam uma linguagem e uma técnica poética comuns, independentemente dos dialectos tribais, que as unia numa mesma cultura de tradição oral.
O lugar onde se recitava o poema chamava-se Samar, onde os beduínos, junto ao fogo e debaixo das estrelas discutiam os acontecimentos do dia e recordavam o passado através dos relatos e assim celebravam os seus triunfos. A qasida é um poema mono rítmico, de rima sempre consoante, formado por uma quantidade variável de versos (que podiam ir até aos cem) todos construídos sobre o mesmo ritmo, selados com a mesma rima, divididos em duas partes iguais.
Os filólogos árabes do séc.VIII dividiram os poemas em três partes:
- Nasib Descreve a amada com abundantes metáforas, comparando-a com o meio natural que o rodeia cheio da perfeição absoluta An-Nabiga
*tradução espanhola
Ella te miraba com los ojos negros de uma gacela domesticada
que llevase puesto un collar;
su piel es mate como el oro puro, y su cuerpo perfecto
es como una rama cimbreante;
su vientre ofrece una delicada curva e escote
se hincha con seno orgulloso;
- Rahil, e uma descrição da viagem que o poeta empreende, na qual menciona os muitos lugares, nomes de vales etc. Descreve os animais que habitam estes lugares, o tempo e o seu cavalo ou camelo. O exemplo do poeta Ibn Zuhayr, om que descreve a sua camela e a paisagem ardente por onde viaja. Este trecho é retirado de um poema dedicado ao profeta mas corresponde plenamente à estética pré-isâmica
*tradução espanhola
Su’ad se fue a una tierra a la que no llegan
sino las nobles, generosa y veloces cabalgaduras;
no llegara sino una robusta camella, que tenga,
a pesar del cansancio, el paso rápido y ligero:
el sudor le cae detrás las orejas, transpirando,
cuando busca las señales de un camino ignoto;
escruta el espacio como un toro salvaje
cuando arden los pedregales e las dunas;
- fajr, onde o poeta descreve a chegada à sua meta, quando se encontra com a tribo, o chefe, os amigos e os inimigos. Segue um fragmento de Na-Nabiga, um madih dedicado ao rei de Hira:
*tradução espanhola
El Eufrates va henchido por los vientos
Y sus olas espumosas baten sus dos orillas,
Engrosado por riachuelos desbordados,
Cargado de arbustos y plantas arrancadas,
Y el que navega sobre sus aguas, aterrado,
Se aferra al timón, con esfuerzo y fatiga.
Y aún así nos es comparable su generosidad a la de An-Nu^man,
Cuyas dádivas de hoy no excluyen as de mañana.
No entanto esta classificação não reflecte a realidade da poesia pré-islâmica porque nem sempre se cumprem estas três partes, encontrando-se estes temas isolados muitas vezes. Assim, os árabes dividiram a literatura em dois grandes grupos: nazm, o ordenado, e natr descrevendo desta forma a poesia e a prosa.
3.1 Al-Mu'allaqat
Em menos de duzentos anos cerca de cem poetas criaram uma herança válida até aos nossos dias. Dois ou três séculos depois da sua criação, os eruditos muçulmanos reuniram os poemas por eles elaborados. Circularam várias antologias, sendo a mais famosa a do recitador Hammad, conhecida como as Mu^allaqat.
Numa pequena cidade chamada ^Ukaz reuniam-se todos os anos, numa enorme feira, todas as tribos da Península Arábica. Ali faziam e desfaziam alianças, comerciavam e contactavam uns com os outros, mas a grande atracção desta feira eram as convenções poéticas. Realizavam-se concursos em que poetas de toda a Arábia participavam para medir a sua habilidade poética e narrar as suas façanhas. Os temas apresentados eram variados como Nasib, Rahil, Rittha… Não importava o que se dizia mas sim como, a qasida era em si o objecto, não o meio. A palavra era a arma, muitas vezes mais forte do que a espada. Os versos dos poetas tanto podiam causar inimizades entre as tribos com celebrar alianças entre elas.
O vencedor dos concursos poéticos recebia a sua qasida gravada em ouro sobre uma tela em pele e colocada em redor da Qaba, ao mesmo nível que um dos muitos ídolos lá colocados.
Mas esta não é a única fonte que existe sobre a poesia árabe da época pré-islâmica. Existem várias colectâneas como al-Mufaddalat, “as preferidas”, que reúne a obra de seis poetas; As^ar al-^arab, a poesia dos árabes; um livro chamado Hamasa, que reúne a poesia épica do deserto; As^ar al-lusus, os poemas dos bandidos; Kitab al agani, o livros das canções. Todos eles constituem uma fonte muito importante sobre o mundo dos árabes da Yahiliyya, onde os poetas desempenham um papel de testemunhas e historiadores.
Na lista dos grandes poetas (entre sete e dez) da era pré-islâmica cujos poemas estão recolhidos nas Mu^allaqat, “poemas suspensos”, o primeiro nome que se destaca é o de Imru’l-Qays. Este poeta, filho do rei de Kinda, foi na verdade um príncipe, apesar de toda a sua vida ter a marca da poesia.
Outro vencedor de ^Ukaz foi Tarafa B. Al-^abd al-bakri, poeta desde muito jovem, era oriundo de uma família de poetas foi durante algum tempo protegido do rei de Hira. É o autor da Mu^allaqat mais longa, com 102 versos. Nela canta aos seus camelos e as suas orgias. Elogia o vinho e os prazeres da vida.
O terceiro poeta na lista das Mu^allaqat é Zuhayr bin Abi Salma. Nascido numa família de poetas, ele é originário da tribo de Muzayna, que deu à antiguidade árabe três dos seus maiores poetas: Imru^l Kais, Al Nabiga al Zuiyani e o próprio Zuhayr. Os seus versos pautam-se por belas ideias que, apesar de ser um homem da Yahiiyya, reflectem os princípios do Islão.
A poesia pré-islâmica era uma poesia formal em que a arte de discursar em versos não se aplica aos pensamentos mas sim às palavras. As palavras constituem o objecto principal, enquanto os pensamentos são simples acessórios”. Os árabes tinham uma língua rica e os poetas eram os senhores da arte de bem falar. Foi a esta época que os poetas posteriores foram buscar vocabulário e a forma da qasida (poema) que significa “dirigir-se a alguém” ou recitar.
4. Conclusão
A língua árabe espalhou-se em conjunto com o Islão, as novas cidades com as suas populações imigrantes e os governos dominados pelos Árabes, serviram de centros de maior expansão da língua. E, se em alguns locais teve maior dificuldade em implantar-se enquanto língua falada, no que diz respeito à escrita não encontrou fronteiras.
Sob o poder dos Omeiadas a tradição poética continuou a florescer e os poetas mais famosos desse tempo continuam a ser os de origem beduína árabe. No período tardio dos Omeiadas e no início do califado Abássida deu-se uma grande mudança: enquanto meio de expressão, o arábico tornou-se vital para o trabalho, nomeadamente para os oficiais e administrativos Persas que vieram servir os novos governantes. Assim, o centro da actividade literária mudou-se dos oásis e acampamentos tribais para as novas cidades. Basra e Kufa desempenharam um papel fundamental a inicio e depois a nova capital, Bagdad. Apesar de a recitação ter continuado, os trabalhos literários começaram a ser escritos, o advento do Islão alterou o modo como as pessoas encaravam a língua árabe. A língua do Corão era a mesma em que a poesia antiga havia sido escrita e, para uma maior compreensão das revelações tornava-se necessário uma maior compreensão da linguagem. Desta forma, os filólogos, estrangeiros na sua maior parte, debruçaram-se sobre o estudo destas obras que se tornaram exemplos das normas da linguagem.
E, mais importante do que os trabalhos teóricos, surgiu uma nova poesia, quer em temas quer em forma. O trabalho de homens como Abu Nuwas, de origem persa, que vem elogiar o vinho e o estado de embriaguês e louvar o amor erótico e Ziryab, que cria a nawba no Al-andalus são o reflexo disto mesmo.
BIBLIOGRAFIA
H. Albert, A History of the Arab Peoples, Faber and Faber, London (1991)
D. Sourdel, O Islão, Memmartins (1949)
B. Lewis, Os Árabes na história, Ed. Estampa (1996)
www.arabespanol.org
www.mundoarabe.org
www.hispanoarabe.org
Aluno: Luísa Correia
Universidade do Algarve
Faculdade de Ciências Humanas
Departamento de História e Arqueologia
Mestrado em Culturas Árabe, Islâmica e o Mediterrâneo
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