Ciência islâmica: alguns aspectos da sua história
João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra
Expresso-Revista, 27 de Outubro de 2001, p.119
1. Versão original, um pouco mais extensa do que a que foi publicada.
2. A maior parte dos cortes que conduziram ao texto publicado foi da minha responsabilidade.
3. O erro no local de nascimento de al-Biruni, aqui corrigido, foi também da minha responsabilidade.
O matemático persa Abu Rayhan al-Biruni, nascido no ano de 973 em Khwarezm, no actual Uzbequistão, passou a vida a viajar pela Ásia Central, a fazer observações astronómicas e geográficas, a estudar e a escrever. Personalidade tolerante e ecléctica, aprendeu muitas línguas diferentes e estudou culturas variadas. Sendo a maior parte da sua obra dedicada a temas de matemática, astronomia e áreas próximas (96 manuscritos de um total de cerca de 150 referenciados, e 15 dos 22 que sobreviveram até hoje), escreveu também trabalhos sobre medicina e farmacologia, metais e pedras preciosas, religião e filosofia, e ainda uma monumental história da Índia, que chegou até aos nossos dias, estando traduzida em várias línguas. Trabalhou até ao fim da vida, vindo a morrer em Ghazna, no actual Afeganistão, por volta de 1050.
Al-Biruni foi um dos vultos mais eminentes da ciência e da cultura do mundo islâmico, nos séculos que se seguiram à rápida expansão da religião muçulmana, a partir da península arábica, pela Ásia Central até à Índia, e pelo norte de África até à Península Ibérica. Algumas das características principais do ambiente cultural e científico em que o cientista persa se destacou são provavelmente familiares a muitos leitores. Estou a pensar sobretudo na ideia de que o mundo islâmico dos séculos VIII a XV foi o “portador” ou “transmissor” das grandes tradições científicas clássicas, nomeadamente da fabulosa herança grega, até ao renascimento europeu.
No ocidente da idade moderna encontram-se amiúde referências à ciência islâmica como de mera tradução e repetição dos clássicos. Renan, por exemplo, escreveu que “a ciência dita árabe de árabe só tem a língua (...) não é árabe nem sequer muçulmana”. Sob tal ponto de vista, o árabe tomou conta dos livros científicos enquanto o europeu dormia ou pensava noutras coisas.
Esta visão reflecte, para além de meros preconceitos ligados a circunstancialismos históricos, uma atitude muito difundida que consiste em afirmar simplesmente “o que eu não vejo não existe”.
De facto as grandes obras da antiguidade clássica – como as de Euclides, Arquimedes, Apolónio, Diofanto, Ptolomeu, etc. – foram traduzidas, estudadas e comentadas pelos cientistas islâmicos. Mas dizer só isso é redutor. No período em causa floresceu no mundo islâmico uma cultura muito rica e, no caso que aqui mais nos interessa, uma ciência com contribuições originais em várias áreas do conhecimento (sobretudo em matemática, astronomia e afins), e sem rival durante muitos séculos. Isto pode afirmar-se apesar de que tal ambiente científico não está ainda completamente estudado, nem sequer no mundo islâmico contemporâneo, onde naturalmente essa realidade histórica é mais bem conhecida. No milénio a seguir ao século VIII estão identificados mais de mil cientistas islâmicos activos. Como fontes conhecem-se milhares de manuscritos e instrumentos científicos, mas muitos mais permanecem ainda hoje por analisar, ou sequer por catalogar.
Em matéria de transmissão de patrimónios culturais e científicos, pode estabelecer-se um interessante paralelo entre a actividade de tradução de clássicos, nomeadamente gregos e indianos, patrocinada pelos califas de Bagdad nos séculos VIII e IX, e a escola de tradutores instituída em Toledo, sob patrocínio eclesiástico e real, nos séculos XII e XIII. Esta escola foi criada com o objectivo de obter versões latinas, que vieram a ter muita influência na Europa, das mais importantes obras de autores de língua árabe, cujos nomes foram frequentemente latinizados. Em ambos os casos há culturas em ascensão que procuram o diálogo com outras de qualidade estabelecida, e nesse encontro tem importante papel a mais universal de todas as linguagens, a linguagem da ciência.
Várias das obras traduzidas da língua árabe em Toledo eram ainda clássicos gregos, que em certos casos chegaram por esta única via ao ocidente cristão. Mas muitas eram originais de autores islâmicos, e a sua importância é atestada pelo facto de algumas, séculos depois, terem sido impressas na Europa.
*
Nos limites estreitos deste artigo, é impossível dar uma ideia da abundância e diversidade das contribuições científicas do mundo islâmico. (O leitor interessado na Matemática pode consultar com proveito o capítulo de Maria Fernanda Estrada na recente História da Matemática publicada pela Universidade Aberta.) Assim, farei referência só a alguns grandes nomes e aos temas que trataram.
Uma área em que a contribuição islâmica foi notável foi o estudo das equações, de tal forma que o capítulo da Matemática que trata do assunto tem um nome de origem árabe, a Álgebra. O nome deriva de al-jabr, expressão que figura no título de uma obra de Mohamed ibn Musa al-Khwarizmi (séculos VIII-IX). A expressão significa qualquer coisa como “reconstrução”, e refere-se à operação de adicionar uma mesma quantidade a ambos os membros de uma equação. Esta ideia está presente num sentido alternativo da palavra “algebrista”, que na Península Ibérica foi durante muito tempo sinónimo de “endireita”. No Don Quijote, por exemplo, encontra-se este trecho, relativo a um personagem que tinha partido umas costelas ao cair do cavalo: “En esto fueron razonando los dos, hasta que llegaron a un pueblo donde fue ventura hallar un algebrista, con quién se curó el Sansón desgraciado.”
O livro de Álgebra de al-Khwarizmi foi muito influente – porventura mais do que o seu mérito intrínseco mereceria – devido à utilidade prática das matérias apresentadas, em particular a solução de equações do 1º e 2º graus, e regras com aplicação em questões de heranças, comércio e contabilidade. Ao mesmo autor se deve um tratado, posteriormente traduzido para latim, sobre os sistemas de numeração indiana. As nossas palavras algarismo e algoritmo derivam do nome de al-Khwarizmi. Quanto aos símbolos que vulgarmente usamos para designar os números naturais mais pequenos
0 , 1, 2 , 3 , 4 , 5 , 6 , 7 , 8 , 9
ainda hoje lhes chamamos, com alguma impropriedade histórica, “algarismos árabes”.
A Aritmética (ou teoria dos números, como hoje se diz) e a Álgebra com as suas equações foram temas estudados pelos matemáticos islâmicos, com cada vez maior pormenor e profundidade e ultrapassando a herança grega, ao longo dos séculos seguintes. A escrita decimal dos números, e a prática dos algoritmos com eles, foram-se generalizando. Um dos grandes nomes nestes temas é o matemático e poeta persa Omar Khayyam (séculos XI-XII), com importantes estudos sobre a extracção de raízes e investigações algebro-geométricas sobre as equações do 3º grau. Ao seu nome está também associada a famosa fórmula, usualmente atribuída a Newton, sobre potências de somas, a cuja beleza Fernando Pessoa / Álvaro de Campos dedicou um curto poema.
Outra área em que os cientistas do mundo islâmico se destacaram foi na trigonometria – isto é, o estudo e cálculo com ângulos e triângulos – no plano e na esfera. As aplicações em vista eram várias, principalmente no domínio da astronomia, da geografia e da cartografia. Alguns dos nomes mais relevantes nestes temas são o de al-Biruni e o de al-Battani (séculos IX-X), latinizado para Albatenius, autor de importantes estudos astronómicos. Na trigonometria esférica destacou-se também Jabir ibn Aflah (século XII), de Sevilha, cujo nome foi latinizado para Geber.
Ainda na área da Matemática, há referência a estudos pioneiros sobre criptografia, a ciência das comunicações seguras.
Parte integrante da tradição científica islâmica no período em causa são as centenas de instrumentos, astronómicos e outros, que ainda hoje se conservam. Para além da sua sofisticação científica e técnica, muitos destes instrumentos, como esferas, relógios de sol e astrolábios, são verdadeiras obras de arte.
Article complet sur le site: http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/cienciaislamica.htm
João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra
Expresso-Revista, 27 de Outubro de 2001, p.119
1. Versão original, um pouco mais extensa do que a que foi publicada.
2. A maior parte dos cortes que conduziram ao texto publicado foi da minha responsabilidade.
3. O erro no local de nascimento de al-Biruni, aqui corrigido, foi também da minha responsabilidade.
O matemático persa Abu Rayhan al-Biruni, nascido no ano de 973 em Khwarezm, no actual Uzbequistão, passou a vida a viajar pela Ásia Central, a fazer observações astronómicas e geográficas, a estudar e a escrever. Personalidade tolerante e ecléctica, aprendeu muitas línguas diferentes e estudou culturas variadas. Sendo a maior parte da sua obra dedicada a temas de matemática, astronomia e áreas próximas (96 manuscritos de um total de cerca de 150 referenciados, e 15 dos 22 que sobreviveram até hoje), escreveu também trabalhos sobre medicina e farmacologia, metais e pedras preciosas, religião e filosofia, e ainda uma monumental história da Índia, que chegou até aos nossos dias, estando traduzida em várias línguas. Trabalhou até ao fim da vida, vindo a morrer em Ghazna, no actual Afeganistão, por volta de 1050.
Al-Biruni foi um dos vultos mais eminentes da ciência e da cultura do mundo islâmico, nos séculos que se seguiram à rápida expansão da religião muçulmana, a partir da península arábica, pela Ásia Central até à Índia, e pelo norte de África até à Península Ibérica. Algumas das características principais do ambiente cultural e científico em que o cientista persa se destacou são provavelmente familiares a muitos leitores. Estou a pensar sobretudo na ideia de que o mundo islâmico dos séculos VIII a XV foi o “portador” ou “transmissor” das grandes tradições científicas clássicas, nomeadamente da fabulosa herança grega, até ao renascimento europeu.
No ocidente da idade moderna encontram-se amiúde referências à ciência islâmica como de mera tradução e repetição dos clássicos. Renan, por exemplo, escreveu que “a ciência dita árabe de árabe só tem a língua (...) não é árabe nem sequer muçulmana”. Sob tal ponto de vista, o árabe tomou conta dos livros científicos enquanto o europeu dormia ou pensava noutras coisas.
Esta visão reflecte, para além de meros preconceitos ligados a circunstancialismos históricos, uma atitude muito difundida que consiste em afirmar simplesmente “o que eu não vejo não existe”.
De facto as grandes obras da antiguidade clássica – como as de Euclides, Arquimedes, Apolónio, Diofanto, Ptolomeu, etc. – foram traduzidas, estudadas e comentadas pelos cientistas islâmicos. Mas dizer só isso é redutor. No período em causa floresceu no mundo islâmico uma cultura muito rica e, no caso que aqui mais nos interessa, uma ciência com contribuições originais em várias áreas do conhecimento (sobretudo em matemática, astronomia e afins), e sem rival durante muitos séculos. Isto pode afirmar-se apesar de que tal ambiente científico não está ainda completamente estudado, nem sequer no mundo islâmico contemporâneo, onde naturalmente essa realidade histórica é mais bem conhecida. No milénio a seguir ao século VIII estão identificados mais de mil cientistas islâmicos activos. Como fontes conhecem-se milhares de manuscritos e instrumentos científicos, mas muitos mais permanecem ainda hoje por analisar, ou sequer por catalogar.
Em matéria de transmissão de patrimónios culturais e científicos, pode estabelecer-se um interessante paralelo entre a actividade de tradução de clássicos, nomeadamente gregos e indianos, patrocinada pelos califas de Bagdad nos séculos VIII e IX, e a escola de tradutores instituída em Toledo, sob patrocínio eclesiástico e real, nos séculos XII e XIII. Esta escola foi criada com o objectivo de obter versões latinas, que vieram a ter muita influência na Europa, das mais importantes obras de autores de língua árabe, cujos nomes foram frequentemente latinizados. Em ambos os casos há culturas em ascensão que procuram o diálogo com outras de qualidade estabelecida, e nesse encontro tem importante papel a mais universal de todas as linguagens, a linguagem da ciência.
Várias das obras traduzidas da língua árabe em Toledo eram ainda clássicos gregos, que em certos casos chegaram por esta única via ao ocidente cristão. Mas muitas eram originais de autores islâmicos, e a sua importância é atestada pelo facto de algumas, séculos depois, terem sido impressas na Europa.
*
Nos limites estreitos deste artigo, é impossível dar uma ideia da abundância e diversidade das contribuições científicas do mundo islâmico. (O leitor interessado na Matemática pode consultar com proveito o capítulo de Maria Fernanda Estrada na recente História da Matemática publicada pela Universidade Aberta.) Assim, farei referência só a alguns grandes nomes e aos temas que trataram.
Uma área em que a contribuição islâmica foi notável foi o estudo das equações, de tal forma que o capítulo da Matemática que trata do assunto tem um nome de origem árabe, a Álgebra. O nome deriva de al-jabr, expressão que figura no título de uma obra de Mohamed ibn Musa al-Khwarizmi (séculos VIII-IX). A expressão significa qualquer coisa como “reconstrução”, e refere-se à operação de adicionar uma mesma quantidade a ambos os membros de uma equação. Esta ideia está presente num sentido alternativo da palavra “algebrista”, que na Península Ibérica foi durante muito tempo sinónimo de “endireita”. No Don Quijote, por exemplo, encontra-se este trecho, relativo a um personagem que tinha partido umas costelas ao cair do cavalo: “En esto fueron razonando los dos, hasta que llegaron a un pueblo donde fue ventura hallar un algebrista, con quién se curó el Sansón desgraciado.”
O livro de Álgebra de al-Khwarizmi foi muito influente – porventura mais do que o seu mérito intrínseco mereceria – devido à utilidade prática das matérias apresentadas, em particular a solução de equações do 1º e 2º graus, e regras com aplicação em questões de heranças, comércio e contabilidade. Ao mesmo autor se deve um tratado, posteriormente traduzido para latim, sobre os sistemas de numeração indiana. As nossas palavras algarismo e algoritmo derivam do nome de al-Khwarizmi. Quanto aos símbolos que vulgarmente usamos para designar os números naturais mais pequenos
0 , 1, 2 , 3 , 4 , 5 , 6 , 7 , 8 , 9
ainda hoje lhes chamamos, com alguma impropriedade histórica, “algarismos árabes”.
A Aritmética (ou teoria dos números, como hoje se diz) e a Álgebra com as suas equações foram temas estudados pelos matemáticos islâmicos, com cada vez maior pormenor e profundidade e ultrapassando a herança grega, ao longo dos séculos seguintes. A escrita decimal dos números, e a prática dos algoritmos com eles, foram-se generalizando. Um dos grandes nomes nestes temas é o matemático e poeta persa Omar Khayyam (séculos XI-XII), com importantes estudos sobre a extracção de raízes e investigações algebro-geométricas sobre as equações do 3º grau. Ao seu nome está também associada a famosa fórmula, usualmente atribuída a Newton, sobre potências de somas, a cuja beleza Fernando Pessoa / Álvaro de Campos dedicou um curto poema.
Outra área em que os cientistas do mundo islâmico se destacaram foi na trigonometria – isto é, o estudo e cálculo com ângulos e triângulos – no plano e na esfera. As aplicações em vista eram várias, principalmente no domínio da astronomia, da geografia e da cartografia. Alguns dos nomes mais relevantes nestes temas são o de al-Biruni e o de al-Battani (séculos IX-X), latinizado para Albatenius, autor de importantes estudos astronómicos. Na trigonometria esférica destacou-se também Jabir ibn Aflah (século XII), de Sevilha, cujo nome foi latinizado para Geber.
Ainda na área da Matemática, há referência a estudos pioneiros sobre criptografia, a ciência das comunicações seguras.
Parte integrante da tradição científica islâmica no período em causa são as centenas de instrumentos, astronómicos e outros, que ainda hoje se conservam. Para além da sua sofisticação científica e técnica, muitos destes instrumentos, como esferas, relógios de sol e astrolábios, são verdadeiras obras de arte.
Article complet sur le site: http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/cienciaislamica.htm
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